TEÓRIA DA COMUNICAÇÃO
ENTREVISTA - VANESSA BORTULUCCE
“Uma opinião que o público não legitima, rapidamente sai de cena”
Neta de czares russos e imigrantes italianos a mestre, pós - doutora e crítica de arte, Vanessa Bortulucce, aos 40, se prepara para lançar seu segundo livro "Diários de Boccioni". Longe de estar presa a uma corrente teórica, Vanessa se intitula uma pensadora de nenhum ‘’ismo’’, valorizando várias linhas de pensamento por acreditar nas pontes e pontos de contato entre pensadores que concedem, sobretudo , conhecimento. Cutucando a ferida da sociedade brasileira, não titubeou em mostrar seu lado "frankfurtiano" indo ao cerne da problemática tricotomia entre opinião pública, meios de comunicação e democracia.
Como mestre em teoria da comunicação de universidades como São Judas e Academia Brasileira de Artes, ao longo da entrevista reverbera seu conhecimento retratando as influências dos meios de comunicação de massa e suas introjeções na sociedade que atinge desde o campo estético onde ela explica que "todo mundo é um Guy Fawkes, de uma certa maneira, todo mundo assumiu o valor simbólico" ao se referir ao filme "V de Vingança" correlacionando as manifestações de 2013, chegando à falsa democracia existente em nosso país nos dias hodiernos. Sua maior indagação é pensar na sociedade e na “tal opinião pública” e como esta opinião anseia ser absorvida, trazendo à tona a ideia de que isto só ocorrerá com a reflexão de cada indivíduo e ainda, com a sua legitimação.
POPI- Você tem uma linha teórica? Quais são seus teóricos preferidos?
VANESSA BORTULUCCE:Eu não tenho uma linha teórica definida. Na verdade, tenho interesse pela maioria dos teóricos, gosto muito de trabalhar aqueles que vão estudar o contexto da transição do século XIX pro início do século XX, principalmente Marx, sem ser marxista ou dogmática, porem creio que o marxismo suscitou uma série de questões que até hoje são discutidas.Também tenho uma grande atração por teóricos do pós-modernismo.Gosto muito de trabalhar com Foucault,Pierre Bourdieu,Debord,Baudrillard.Dos Frankfurtianos,Adorno, Durkheim... Sou historiadora, então nesse sentido eu penso que o trabalho de um antropólogo, de um sociólogo, historiador, teórico da comunicação todos eles acabam dialogando de forma muito profícuas. Neste sentido, não posso dizer que sou uma pensadora que tem um pendor mais a uma determinada teoria ou não, acho que temos que conhecer todas e a partir deste conhecimento fazermos pontos de contato, aproximação, verificar distanciamentos entre esses escritos.
POPI- Qual a importância do debate para a comunicação no século XX?
VANESSA BORTULUCCE: Falar em meios de comunicação, é falar daquele processo que se inicia a partir da revolução industrial na 2ª metade do século XVIII. Claro que aos poucos nós temos o estabelecimento de meios da comunicação de massa como jornais, periódicos, depois a televisão, o rádio e todos estes componentes. Então, a importância é enorme. A primeira ideia é a da agulha hipodérmica, em que o público é como se fosse uma esponja que absorve o poder da mídia. É uma teoria que já no contexto do pós-guerra começa a ser um pouco revista, principalmente, porque alguns grupos influenciados por uma visão crítica dos meios de comunicação vão romper essa ideia do público como agente passivo que sofre efeitos da mídia, mas um público que também constrói essa mídia, que contesta essa mídia e que altera as mensagens que ela transmite. E nós temos teóricos que defendem que até esta mensagem que sai dos meios de comunicação não chega a seu receptor da mesma maneira que ela se origina desses meios de comunicação, então alguma coisa acontece no caminho. As pessoas interpretam também de maneiras diferentes, as notícias se apresentam em camadas, a publicidade também é lida dessa forma. As visões de mundo do indivíduo são projetadas também nessas notícias. Então não temos a ideia de uma notícia que é totalmente neutra, pois isso não há, não existe, ou o compromisso com a total objetividade, com a ideia de verdade que é um conceito extremamente terrível, extremamente relativo. O que a experiência do pós-moderno faz em relação as experiências na modernidade é romper com esse caráter de absoluto e voltar ao território do relativo. Bourdieu nesse sentido é importante quando ele fala de capital cultural, além da ideia do “habitus” e dos campos, mas Bourdieu vai dizer que a maneira, isso são as teorias da cultivação também, a forma pela qual nós compreendemos a notícia, ou compreendemos uma publicidade, ela também se modifica porque os conhecimentos adquiridos pelos indivíduos também são fatores importantes na reconstrução dessa informação. Eu estou querendo dizer que nós podemos ler uma notícia de várias maneiras diferentes e nenhuma delas será totalizante, mas a vivência de cada um influencia em como eu vou absorver a notícia, sem dúvida nenhuma.
POPI- E a questão do agendamento?
VANESSA BORTULUCCE: É uma determinação daquilo que as pessoas vão discutir, o que é complicado, por isso tem esse nome Agenda. Uma agenda que é construída onde os principais tópicos são apresentados e eles passam a ser discutido entre as pessoas. Porque tem muitas coisas acontecendo e a relevância da notícia, penso eu, se dá por aqueles fatos que não são pessoais, mas que tem uma relevância social justamente por abarcar um número maior de indivíduos, o que a gente chamaria de " interesse público ". Nós temos nossos interesses individuais, mas existe também o interesse público, fatos que tem este vulto acabam sendo trazidos para essa discussão da agenda. A questão é a seguinte, você coloca um monte de tema que passa a ser discutido por todos, mas as pessoas sabem do que se trata esse tema? Por exemplo, os precatórios, inclusive essa é uma pesquisa que o Luís Mauro San Martino desenvolveu junto com sua equipe. Das quatrocentas pessoas entrevistadas todas tinham ouvido falar da notícia dos precatórios, 100% sabiam que era uma questão importante dentro do debate público, mas apenas duas pessoas sabiam o que significava o termo precatório. Qual foi a comprovação da agenda setting? A sociedade durante 15 dias falou sobre algo que não sabiam do que se tratava. Lógico que haverá uma seleção de notícias, ainda mais com o volume de informações que a sociedade urbana possui hoje, não tem como nós tratarmos de tudo todos os dias. Então acho que este agendamento pode direcionar a divulgação de uma determinada notícia, mas ele não dá conta de fazer com que todos os indivíduos tenham um pensamento crítico e conheçam sobre aquilo que esta sendo falado.
POPI- A questão da formação da opinião pública, como ela se dá no Brasil? Qual é a influencia dos meios de comunicação sobre ela? Quais são os principais adversários e aliados da opinião pública no Brasil?
VANESSA BORTULUCCE: Acho que o problema da opinião pública é quando a tomamos como algo extremamente externo a nós. A gente tem muita tendência de falar de opinião pública como algo que está fora, e vê de uma forma muito descolada, destacada “a opinião pública achou tal coisa”, mas o que eu sou afinal de contas? Estou fora dessa opinião pública? Acho que isto é uma espécie de entrave que dificulta as pessoas de refletirem sobre o mundo em que vivem. Quando eu falo em termos de reflexão, eu não estou falando de o indivíduo fazer uma carreira escolar enorme, porque eu acho que pensar sobre o mundo é algo que está a disposição das pessoas mas precisa ser estimulado. Quanto menos refletimos e sabemos e quanto mais nos satisfazemos com o raso e o superficial mais perigoso é. Porque você pensa estar fazendo parte de uma opinião pública, mas na verdade você não faz parte dessa opinião por ser algo construído. Ela é formada pelos meios de comunicação? Sim, acho que eles têm um papel muito relevante, não diria no sentido hipodérmico do qual eu não possa reagir, mas acho que ainda exista esse potencial atrativo dos meios de comunicação, ainda existem muitas pessoas que sentam e esperam que a mídia no sentido mais amplo diga pra elas o que elas têm que fazer, consumir...
POPI- Quais os temas debatidos que você acredita serem os mais relevantes?
VANESSA BORTULUCCE:
Em relação aos outros temas, penso muito nos exemplos do Daniel Alves do futebol, da questão do ‘’Eu não mereço ser estuprada’’, que durante alguns dias isso foi muito comentado em redes sociais, TVs e jornais e de repente pararam. Se a gente parar para pensar, tentando refazer o percurso, não vamos saber exatamente quando se parou de discutir. No caso do ‘’ somos todos macacos’’, criou-se uma hashtag, uma camiseta, ou seja, se consumiu o evento como se consome um refrigerante? Debates importantes para a sociedade são eclipsados. O que chama a atenção dos indivíduos? Uma ‘’espetacularização’’? A indignação é um espetáculo? Isso é terrível, como se a minha indignação só fizesse sentido se ela se tornasse pública, se ela se tornasse midiática de alguma maneira. E a questão da mulher na sociedade, a mulher que ainda ganha menos que o homem, que ainda sofre sexismo, preconceitos...onde que fica isso? Parece que permanece sempre em um eterno limbo, de vez em quando surge a cena pública e parece que existe um prazo de validade para se escandalizar, e depois desse prazo ... Isso não faz parte do debate, e quando ele acontece também entra na lógica do consumo, e isto é muito complicado, porque o debate precisa sair desse limite.
POPI- Maquiavel diz ‘’A voz do povo é a voz de Deus’’, mas Alexander Popeu diz ‘’É estranha a voz do povo, é e não é a voz de Deus. Qual das duas você acredita e por quê?
VANESSA BORTULUCCE: A voz do povo é sempre a mais importante, se nós quisermos algum tipo de modificação efetiva no nosso país, não só em termos nacionais, como até em locais mesmo, é necessário que a gente se faça ouvir, como a ideia do manifesto que é deixar claro. Isso é importantíssimo e uma das maiores armas que a coletividade pode ter é fazer-se ouvir. Só que isto também não é fácil, ela precisa ter esse respeito entre os indivíduos, uma ideia consensual, uma reivindicação que não vá favorecer um grupo ao prejudicar o outro. A voz do povo sempre será o mais importante, mas o problema é a representatividade. Quem fala pelo povo? Como é possível que algumas pessoas representem um grupo maior? Como que eu vou representar um grupo de indivíduos? Como vou representar uma nação? Como isso se dá? Eu tenho que representar a vontade dos outros, o bem estar do grupo como mais importante que somente minha vontade, meu desejo individual. E quem seria esse Deus que você está falando? A voz do povo é a voz do líder? Ou a voz do líder é a voz do povo? Nós deveríamos sempre em uma sociedade democrática ser aberta para manifestações o que é muito difícil depois de entendermos é que democracia é exatamente você permitir que o outro expresse sua opinião, mesmo que você seja contrária a ela.
Então te devolvo com Voltaire ‘’Posso não concordar com uma coisa que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las’’. A democracia é um exercício de coragem.
POPI- Você acredita na diferenciação da opinião pública entre os ricos e os pobres no Brasil?
VANESSA BORTULUCCE: Existe sim, ainda é muito presente no Brasil aquelas opiniões muito genéricas que viraram quase que uma cultura como ‘’o rico é instruído, o pobre não’’, ‘’o pobre vota mal porque não tem consciência politica’’. Isso é uma tremenda bobagem, primeiro que você esta pasteurizando e estereotipando demais. Isso lembra Bourdieu que ainda na década de 60 na França vai dizer que capital econômico não é atrelado a capital cultural, então pessoas que tem um grande conhecimento de vida, intelectual inclusive, não necessariamente são ricas e vice-versa. O próprio Bourdieu é filho de camponeses e se tornou um dos maiores especialistas e professores das universidades da França, mas acho que existe isso sim, quando você pensa, por exemplo, no caso dos moradores de Higienópolis que protestaram para não haver uma linha de metrô que passasse no bairro. E aí eu volto para a questão da arte, então nós temos um público de uma camada social muito alta que frequenta os museus e conhecem todos aqueles artistas, mas quando essa arte está tentando se tornar mais conhecida abrangendo um maior número de pessoas, esse mesmo grupo vai condenar. Existe sim um abismo, preconceitos que saem de um lado para o outro, uma elite que ainda olha de cima pra baixo, pra quem é materialmente desfavorecido. Indivíduos que tem uma condição econômica, que também constroem e colaboram para a manutenção dessa dicotomia. Essa é uma questão que é muito difícil no Brasil, e acho que existem muitos mecanismos que procuram de certa maneira manter cada um no seu lugar, em seu quadrado, não acho que ainda exista em termos de consumo e de cultura algo que pretenda juntar todas essas visões de mundo. É muito difícil. Porém, ao mesmo tempo em que temos acesso a muita informação não vamos nos esquecer de que informação não é conhecimento, ela precisa ser transformada em conhecimento. Mas é necessário que cada um de nós tenha muito claro a consciência de que uma democratização da informação não é uma democratização do conhecimento, para transformá-la em saberes, eu tenho de ser crítica, tenho que relacionar os assuntos, por isso que nós temos sempre que depositar um segundo, terceiro e até quarto olhar das coisas que chegam até nós, pra que sempre possamos manter essa critica funcionando. É isso que vai de certa forma nos vacinar contra essa tal de opinião pública que quer que seja absorvida por nós e somos nós que temos que legitimar essa opinião pública. Uma opinião pública que o público não legitima rapidamente sai de cena.
"uma democratização da informação não é uma democratização do conhecimento, para transformá-la em saberes, eu tenho de ser crítica, tenho que relacionar os assuntos,
por isso que nós temos sempre que depositar um segundo, terceiro e até quarto olhar das coisas que chegam até nós, pra que sempre possamos manter essa critica funcionando"